Cinco anos. Eu tinha apenas cinco anos, mas ainda me lembro como se tivesse sido ontem. Meus pais e eu estávamos na sala assistindo televisão, quando um homem encapuzado entrou e gritou:
- Passa toda a grana pra cá!
- Aqui não tem dinheiro nenhum! - Disse papai e o ladrão respondeu:
- De mãos abanando é que eu não vou sair daqui!
- Não vai levar nada dessa casa! Vá embora ou eu chamo a polícia! - ameaçou papai
- Então está bem - respondeu o ladrão dando meia volta.
Ele então fingiu que estava inda embora, e, quando meus pais menos esperavam, o ladrão voltou-se para eles e atirou nos dois vasculhou a casa à procura de dinheiro. Eu vi tudo de trás do sofá. E quando o bandido foi embora, minha tia, Mercedes, entrou correndo dentro de casa para averiguar se tudo estava bem. E entrando viu-me próxima aos cadáveres dos meus pais:
- O que houve Blenda? - perguntou-me
- Um homem atirou neles - respondi
Nisso tia Mercedes ligou para a polícia. Fomos para a delegacia. Chegando lá o policial questionou-me sobre a aparência do bandido. Eu disse que ele estava com o rosto coberto, e por isso eu não saberia identificá-lo, mas por sorte a dona Filomena, nossa vizinha viu o homem retirar o capuz, e pôde descrevê-lo à polícia Dias depois o bandido foi pego em flagrante assaltando outra casa e só se viu livre depois de 30 anos. Mas isso não vem ao caso, o que importa nessa história é que eu vou contar agora. Naquela noite do crime, eu fui dormir na casa da tia Mercedes, e ela me disse que a partir daquele dia, eu passaria a morar com ela e o marido dela, que não gostou nada da ideia.
O tempo foi passando, minha tia me ensinou a ler e escrever, eu comecei a estudar, e quando completei seis anos, minha tia me presenteou com um violão, que todas as noites ela me ensinava a tocar. Eu fui crescendo, me tornei adolescente e aí começaram os problemas. Quando comecei no ensino médio, eu não conhecia ninguém, e ninguém me conhecia, mas aos poucos fui criando inimizades. Isso mesmo, inimizades, porque os meus colegas me achavam metida, só porque eu sabia tocar violão e diziam que eu me achava superior a eles. Eu não dava à mínima, mas todo dia alguém dava um jeito de me zombar e de me irritar.
Eu tentava ser forte e resistir às provocações, mas quanto mais eu fazia isso, mais as pessoas se esqueciam de que eu também tinha sentimentos. E nunca paravam de importunar. E para piorar o marido da minha tia, que era o segundo marido dela, que havia ficado viúva pouco antes de eu nascer, ele começou a beber e ficar violento. Batia muito na minha tia e em mim, até que um dia ele a matou com duas facadas, e novamente eu vi tudo e como eu estava no alto da escada, corri para o meu quarto, me tranquei lá, enchi minha mochila com roupas, cadernos e canetas, peguei meu violão, que agora com catorze anos eu sabia tocar bem, e depois que seu Walter (era assim que o marido da minha tia se chamava) dormiu, eu saí da casa dele, pra nunca mais voltar. Andei e andei até chegar num posto de gasolina abandonado, e ali sentei, peguei meu violão e dedilhei uma canção de ninar, que minha tia havia me ensinado.
E acabei dormindo ali. No dia seguinte acordei cheia de fome, havia me esquecido de pegar algum pão, ou algum pacote de bolachas, então quando vi um senhor passar, pedi-lhe que me desse algum trocado para que eu pudesse comprar alguma coisa de comer, ou que me pagasse um lanche:
- Desculpe, mas não tenho dinheiro. - respondeu-me o senhor.
Então, enquanto ele se afastava eu comecei a dar uns acordes no meu violão, e a cantarolar baixinho uma música, quando o senhor voltou e deu-me 27.500,00 cruzeoros(mais ou menos 10 reais).
- Obrigada senhor – agradeci
- Ora de nada, você toca muito bem. Deveria dedicar sua vida à música.
Com o dinheiro fui até uma padaria ali perto e tomei café. Depois disso fiquei pensando no que aquele senhor havia dito, e pouco tempo depois, peguei meu violão e fui para uma praça não muito longe nem muito perto dali e, sentada num banco, comecei a tocar e cantar. Várias pessoas se aproximaram, e deixaram moedas e cédulas ao meu lado. À noite, contei todo o dinheiro que havia ganhado durante o dia. Se eu contei certo, tinha uns 687.500 cruzeiros(mais ou menos R$ 250,00). Fiquei muito contente e decidi que dali em diante eu ganharia a vida como cantora. Pus-me a compor novas músicas.
Como eu passava todos os dias na mesma praça, as pessoas começaram a chamar-me de «menina da praça», e eu comecei a ficar conhecida. Então me passou uma coisa pela cabeça: se eu me tornar famosa, não posso usar meu nome de batismo, devo arrumar um nome artístico, e rápido. Pensei e pensei, e cheguei a uma conclusão: meu nome não seria mais Blenda de Sousa e sim Black Blenda, mas por enquanto era apenas «a menina da praça».
Então continuei minha rotina de sempre, ia cedo para a praça, e só ia embora quando anoitecia. Assim que chegava ao posto de gasolina, pegava meus cadernos, uma caneta e começava a escrever e desenhar. Escrevi umas cinquenta músicas durante o tempo que passei morando no posto, e sempre fazia desenhos imaginando-me num palco cuja frente havia uma plateia enorme.
E os meses foram passando. Quando me dei conta tinha mais de 13.750.000 cruzeiros(cinco mil reais) na mochila. Minhas roupas ficaram velhas, algumas ainda pude continuar usando, outras simplesmente joguei fora. E com o dinheiro que tinha, comprei novas roupas para mim. Mas o que eu queria mesmo era uma cama para dormir, bom, mas eu consegui um colchão velho e rasgado, e era melhor que nada. E, mesmo sabendo que todo dia era sempre a mesma coisa, levantar a hora que acordasse, seja ela qual for, ir a padaria tomar café da manhã, e depois ir para a mesma praça, sentar no mesmo no mesmo banco de sempre, tocar violão e cantar, esperando que as pessoas tivessem compaixão e me dessem algum dinheiro, e, depois de várias horas, voltar para o posto, contar o dinheiro ganho no dia, escrever mais algumas músicas, criar novas melodias, e depois dormir, eu queria que mudasse e por muitas vezes pensava que nunca mudaria, e às vezes ainda sentia falta de meus pais e da nossa casa, da tia Mercedes e da casa dela. E esse é o motivo de muitas das minhas letras, sobretudo as primeiras, são tristes, pois eu não consigo me lembrar se tive algum único momento de felicidade verdadeira depois que meus pais foram mortos. E também é por isso que quase não choro mais, porque chorei muito quando criança, mas sabia que logo isso mudaria, eu tinha fé e uma intuição muito grande ao pensar que logo eu teria meu destino mudado, embora não soubesse como.
Certo dia, lá estava eu na praça, quando um homem de terno me viu tocar e gostou de minha música e me levou até uma gravadora, e lá assinei um contrato. Agora eu iria começar a fazer shows. O homem de terno, Marcos, se tornou meu empresário e conseguiu uma banda para mim, Carmem, José, Marcos Jr. (filho do seu Marcos), Laura e Danilo. Todos da minha idade. Logo começamos a ensaiar, e a Carmem me perguntou sobre meu nome, Black Blenda:
- Quem escolheu esse nome lindo para você?
- Meu pai. Ele sempre quis ter uma filha com o nome Blenda.
- E onde seus pais moram? Você mora com eles? - perguntou-me Marcos Jr.
- Meus pais forma assassinados quando eu tinha cinco anos. Eu morei com minha tia até ano passado, quando o marido dela a matou esfaqueada. Desde então moro sozinha, pelas ruas.
- Sinto muito - respondeu Marcos Jr.
- Como a vida foi dura com você, Blenda... É Blenda do que mesmo? – indagou Marcos Jr.
- Blenda de Sousa
- Ué, não era Blenda Black? - perguntou José.
- É Black Blenda José, não Blenda Black. - eu disse rindo - Esse é meu nome artístico, e a propósito, vocês não tem nome artístico?
- Não - responderam-me
- Então vamos arrumar nomes artísticos para vocês.
- Quer começar, Zé? - dei a ideia
- Zé? Poderia ser Ozé! - disse José
- É verdade Quase Ozzy. Carmem?
- Kajovi! - disse ela
- É uma relação com Bon Jovi? - perguntou Oszé
- Sim.
- O meu nome artístico vai ser Dani Kiss - disse o Danilo
- Eu serei Lausabbath, já que você já é Black – disse-me Laura. Todos rimos.
- Já que é pra usar nomes de bandas como referencia, eu serei DeepMar - disse o Marcos.
- De que banda é a relação? - perguntou Kajovi
- Tá na cara que é Deep Purple - disse Dani Kiss
- Deep Purple? É verdade - disse Kajovi
Então depois dessa conversa, Oszé na guitarra, Kajovi no teclado, Lausabbath e DeepMar nos baixos, Dani Kiss na bateria, e eu, Black Blenda no vocal e violão, formamos uma nova banda de rock, e o nome escolhido por nós foi Cold Dark Hell!
Foi exatamente no dia 22 de junho de 1990, quando realizamos nosso primeiro show. Uma emoção, uma adrenalina, como qualquer cantor ou cantora sente ao subir no palco pela primeira vez. Estávamos prontos e tínhamos uma música feita para a abertura do espetáculo, chamava-se Voz Negra e começava com vários efeitos de guitarra e baixo, seguidos por uma batida forte de bateria, e depois o ritmo no teclado. Daí eu começava a cantar:
Vinda do além
Gritando meu nome
Ela me chamou
Ela me procurou
Ela me tocou
Voz Negra...
Depois tocamos Euforia Interna, Fera Aprisionada, Passagem para o Inferno, Angelical, Digno de Amar, Foi Preciso, Magia Eterna, Para sempre na Terra do Nunca, Contradição, Rock and Roll te quer eternamente, Vertigem, Apenas Ficção, Tempos de Fracasso e Recordando o Futuro. A cada música tocada, a energia aumentava, a banda explodia em adrenalina, o público vibrava e cantava junto. Eu não pensava que iria ser tão empolgante, nós, a banda, e o público, não paramos um só minuto. Creio que todos, assim como eu, gostariam que aquele show tivesse durado eternamente. Foi inesquecível. A partir daquele dia, jurei que só pararia de cantar e cessaria minha carreira quando morresse.
- Irei morrer sobre um palco - eu dizia
E acho que os meus pais se estivessem aqui, teriam orgulho de mim, assim como Seu Marcos que me presenteou com uma guitarra novinha em folha. Mas, eu pouco sabia sobre a vida artística E logo comecei a frequentar outros shows de rock quando podia. E assim, com base no que via adquiri conhecimento sobre o rock, e agora que tinha uma casa, e dinheiro para comprar livros e revistas sobre o assunto toda noite eu lia mais sobre minha música, meu ritmo, minha vida, minha alma, meu ser, o Rock and Roll.
Teve um período em que nossa banda fazia dez shows por semana, quarenta por mês. Embora cansássemos, não queríamos deixar de tocar, e é claro aparecer em programas televisivos. Até completarmos dezoito anos cada, eu e os outros integrantes da banda ganhamos cerca de seis discos de ouro e dois de platina. É tão bom saber que as pessoas admiram nosso trabalho, aquele foi o primeiro momento na minha vida em que me senti realizada de todos os meus feitos, talvez até feliz, e pensei que se eu fosse morrer naquele dia, morreria feliz. Lembro que essa boa fase da banda durou uns quatro anos mais ou menos, e a gente conheceu vários países: Inglaterra, Alemanha, Suécia, Austrália, Espanha, Portugal, China, Japão, Argentina, Chile, Paraguai, Suíça... E também conhecemos vários artistas e bandas famosos. Pois é estávamos fazendo sucesso, e éramos conhecidos não só pelo nome da banda, mas também como «os meninos do rock». E nós amamos isso de ser famosos, e eu juro que não trocaria isso nada, a não ser estar com meus pais de volta, se bem que uma vez ouvi meu pai dizer que queria que um dia eu me torna-se médica ou advogada e que eu iria estudar bastante, e também ouvi minha mãe dizer que ela não queria de jeito nenhum que eu seguisse carreira artística. Acho que essa foi a única coisa boa em ter perdido meus pais, já que eu sempre quis seguir na vida artística. E foi nessa época também, que aconteceu um pequeno deslize entre DeepMar e eu. nós com dezessete anos cada um, acabamos por ter um romance e eu engravidei dele. Lembro que o pai dele ficou furioso e impôs que nós dois nos casaríamos após completarmos 22 anos cada um.
...
Quando fez dois meses que eu estava grávida, nós estávamos indo para a lendária cidade de Atenas para realizar o penúltimo show da nossa turnê «Party Night». E faltando pouco para que chegássemos ao local do show, o radar do avião teve uma pane. O nosso avião caiu. Caímos num matagal enorme, e dois integrantes da banda não sobreviveram, Kajovi e Lausabbath. Os shows que íamos fazer naquela semana foram cancelados e foi feita uma cerimônia de despedida para as duas meninas. Muitos fãs de várias partes do mundo apareceram para o velório, e muito tristes nos despedimos delas. O Ozé foi um dos que mais ficou triste pela morte de Kajovi, já que eles estavam juntos.
Bom mas voltando ao velório, eu me recordo de que vários fãs deixaram cartas, mensagens e pertences pessoais no altar que foi construído para elas, que foram boas amigas e grandes artistas, sempre carinhosas com o público e com a banda. Perguntaram-me em uma entrevista recente se elas fizeram falta para a banda.
- Sim. É claro que elas fizeram falta para a banda e principalmente para mim, pois elas foram minhas melhores amigas.
- Mas vocês atualmente tem outro tecladista. Como vocês chegaram até ele?
- Anunciamos na nossa rádio, Expresso Hell FM, que estávamos na busca de uma nova fera dos teclados. E não tardou a aparecerem inscrições para a ocupação do lugar.
- E como vocês escolheram a «nova fera dos teclados»?
- Foi uma escolha difícil, mas nós demos conta. Fizemos uma audiência, e depois de várias horas eliminando e classificando tecladistas, até chegar à Greycesnake, que até hoje toca com a gente.
- Greycesnake toca tão bem quanto Kajovi?
- Não se pode notar a diferença, mas Kajovi era melhor, muito embora, Greycesnake toque muito bem.
- E por que não substituíram a baixista também?
- Nós já tínhamos DeepMar no baixo e achamos melhor deixar só ele
- Por quê?
- Porque antes a gente sempre tinha que escolher entre dos dois pra tocar essa ou aquela parte das músicas. E com um baixista só ficou mais fácil.
- A qualidade da banda diminuiu depois do acidente?
- Não. Conseguimos suprir as ausências de Kajovi e Lausabbath então, o que conseguíamos com elas, hoje conseguimos sem elas. Nós superamos todas as barreiras postas em nossa frente até agora e isso só prova que nós demos a volta por cima mesmo com a ausência das duas.
- Em uma entrevista você disse que ouviu uma conversa sobre haver uma falha no avião. Alguma vez você já se arrependeu de não ter avisado sobre isso pra alguém, e já se arrependeu de ter subido e deixado os outros subirem naquele avião mesmo com o risco iminente de abraçar a morte?
- Sim. Se eu tivesse falado, Kajovi e Lausabbath estariam vivas até hoje. O arrependimento é algo que eu vou levar para o resto da vida. Não só de não ter avisado sobre o que ouvi sobre o radar danificado, mas também de não ter falado sobre o sonho que tive na noite anterior ao acidente.
- Que sonho foi esse?
- Bom naquela noite eu tinha visto um documentário sobre uma banda que teve seu fim depois de um acidente de avião que matou a todos e, o tecladista dessa banda havia tido um sonho com o avião caindo na noite anterior e eu tive o mesmo sonho.
- E por que não falou nada sobre esse sonho para os outros integrantes da sua banda?
- Eu falei para DeepMar, e ele me disse para não me preocupar, que tinha sido apenas um pesadelo e então resolvi não falar nada para mais ninguém.
- Quando o avião caiu naquele dia, você pensou que sua hora havia chegado?
- Na hora não pensei nem senti nada, eu apenas fechei os olhos e comecei a rezar. Eu tinha em mente que logo eu iria reencontrar meus pais, então implorava aos céus que minha morte fosse rápida e indolor.
- Indolor?
- É. Que eu não sentisse dor se fosse morrer. Porque sempre eu sempre senti dor. Doía quando eu ia dormir. Doía quando eu comia, doía quando eu acordava, doía em todo acorde que eu fazia em meu violão
- Como assim?
- Eu vi meus pais morrerem quando tinha cinco anos. Vi minha tia ser esfaqueada pelo próprio marido quando eu tinha catorze anos. Eu morei num posto abandonado. Eu levei uma infância dura. Só fui ter uma família quando Seu Marcos, meu empresário, me encontrou e me levou para a casa dele e me transformou na estrela do rock que sou hoje.
- E depois do acidente, o que você sentiu quando viu os cadáveres das meninas?
- Eu senti o sangue delas descendo pela minha garganta. Foi horrível. Elas tinham sido decapitadas, retalhadas. Os pilotos também morreram. Só se via pedaços de corpos. Foi chocante.
...
Era notória a falta que Kajovi fez na banda. Ela e seu teclado davam uma magia especial à banda. E quem mais sentiu a morte dela, conforme eu já contei foi Ozé. Mas a nova tecladista, Greycesnake, foi sem sombra de dúvida, a melhor coisa que nos aconteceu depois do acidente. Além de ser uma ótima amiga, também ajudou o Ozé a superar a morte de Kajovi e, além disso, fez a banda dar um up, isto é, fez a banda voltar ao que era no começo. Foi exatamente no dia dois de março, exatos três meses após o acidente, se não me falha a memória, que voltamos a fazer shows. O nosso show de volta, intitulado, «Cold Dark Hell: A Ressurreição» foi realizado em Estocolmo, lugar onde gravaríamos o DVD Party Night, aliás, onde nós realmente gravamos Party Night. Então, depois desse show, estava decretada a volta da banda Cold Dark Hell. E essa volta foi mais do que especial, pois além da volta por cima, e da reconquista de sucesso, o Ozé ganhou uma nova confidente, que os outros e eu chamávamos de namorada, mas isso não vem ao caso. O que importa é que a banda voltou com tudo para as paradas do sucesso do mundo inteiro. Essa fase da banda, juro, foi a melhor de todas, não só por voltarmos com tudo, mas porque foi quando melhor nos sentimos. Foram anos e anos no topo do mundo. Eu, por um lado estava contente, mas por outro, me lembrava de meus pais, e por várias noites tive sonhos com eles. Eu os via em shows da Cold Dark Hell, e depois que terminava eu escutava eles dizendo adeus e outras vezes, eles diziam que não era eu a filha que eles tinham gerado. Mas, enfim, eram apenas sonhos, ou era o que deveriam ser. E eu os compartilhava com Marcos Jr., que sempre me dizia.
- Você lembra-se de seus pais dizerem que não queriam você nessa estrada, trabalhando como cantora, e une com a morte deles, por isso acaba tendo esses sonhos. É apenas uma lembrança que faz você aceitar a sua morte.
Não sei de onde ele tirava essas palavras, porém com elas ele sempre me acolhia, e fazia eu me sentir melhor. Com a nossa vida as mil maravilhas, nem nos demos conta de que já haviam se passado os nove meses da minha gestação. Foi exatamente no dia 13 de julho que aconteceu, Minha filha nasceu no dia do Rock e eu a batizei de Caroline. E quando ela cresceu formou uma banda e adotou o nome Maiden of Death (Donzela da Morte), mas isso eu conto depois. Depois que minha filha nasceu, fiquei uns três meses afastada dos palcos, e quando o doutor liberou-me para voltar ao trabalho, eu falei com a banda e voltei o mais depressa possível.
Conforme seu Marcos havia imposto, Marcos Jr. e eu nos casamos. Foi uma cerimônia íntima, e apesar dos milhares de fãs que ficaram lá fora da igreja e das notícias em todos os jornais anunciando o «Casamento do Século», foi uma cerimônia pequena. Depois da festa, meu marido e eu fomos para um hotel numa ilha Caribenha, onde passamos uma semana de Lua de Mel.
...
Caroline de Sousa Vermont, ou simplesmente Maiden of Death, nasceu coincidentemente no dia mundial do rock, 13 de julho, e desde pequena, mostrou seu talento na música. Mas infelizmente um dia, Caroline se perdeu no mundo da prostituição. Sua amiga Bárbara a teria levado a uma balada, onde viu cenas de prostituição e acabou seguindo por esse caminho, junto com Bárbara. Saía de casa antes das dez da noite e voltava só de manhã. Eu como mãe e Marcos Jr. como pai, sempre ficamos muito preocupados com as possibilidades de ela engravidar indesejavelmente, pegar alguma DST, ou pior, ser assassinada, pois a violência nesse mundo aumenta a cada piscar de olhos. Marcos Jr. e eu tentamos de tudo para tirá-la desse mundo, mas a solução veio com um carinha conhecido como Catraca. O que aconteceu, foi que a Caroline se apaixonou por ele, que por sua vez era um traficante e não queria nada com a minha filha. Ele a desprezou. Depois disso, Caroline se transformou na donzela da morte, Maiden of Death. Jurou que não iria se casar. E não se casou mesmo. É sério, depois de se perder e de reencontrar, minha filha virou uma mulher fechada ao mundo, que vivia somente para si.
Depois de anos saímos em uma turnê, que passaria pelo nosso país de origem, e voltaríamos pra a cidade onde nos conhecemos, crescemos e começamos a tocar juntos. Mas, quando chegamos, estava tudo diferente: paredes escurecidas, a parte verde havia sido toda eliminada, algumas construções estavam caindo, a cidade estava deserta, e o chão estava puro barro. Parecia uma cidade pós-guerra, na verdade pós-apocalipse.
- Nós vivíamos aqui? - Perguntou Ozé
- Acho que sim – respondi
- Mãe, essa é a cidade onde você nasceu?
- Sim minha filha - respondi - Foi aqui que eu nasci e foi onde conheci seu pai e os outros. Um dia foi uma cidade bonita e cheia de vida, mas hoje, não passa de um deserto urbanizado.
- Nossa, que melancolia nessas suas palavras, meu amor - disse Marcos Jr. – mas tem razão, a cidade está em trapos
- Bom, é melhor irmos embora - disse Ozé- afinal, não existem nem moscas aqui. Pra quem iríamos tocar? Para o vento?
- Você tem razão, cara- sorriu Danilo – vamos pessoal, vamos pegar a estrada.
E assim, nos retiramos daquele local horrível de se ver. Saímos de lá, fomos para outra cidade, depois outra e outra. Até chegarmos na cidade onde fizemos nosso show final. Chegamos lá e nos hospedamos no primeiro hotelzinho que encontramos.
Na data marcada, 14 de agosto, subimos ao palco para o último show da turnê Cold Dark Hell - The Hell Returns. Pensei que iria ser tudo normal, mas não foi. A medida que fomos tocando, eu olhava para a plateia e via meus pais, pálidos, sérios, com expressões que me diziam: "Você sabe que nós não queríamos que você estivesse sobre um palco. Você nos decepcionou." Eu havia acabado de fazer um dueto mãe e filha com a Caroline, quando me senti fria e escureceu-se minha visão, e depois disso não me lembro de nada, só que depois eu acordei no camarim, com meu marido, minha filha e os outros da banda e técnicos ao meu redor, olhando para mim como se eu fosse alguma descoberta nova e eles cientistas. Falaram-me que eu despenquei e fiquei caída no chão, dando a impressão de estar morta. Quando meu marido percebeu que eu não me movia, foi correndo até a mim e tentou me reanimar. Como eu não acordava, ele me levou para o camarim, e ele me falou que se passaram quinze minutos desde que eu desmaiei até o momento em que acordei. Depois eu acordei e contei o que via enquanto fazíamos o show. Disseram para eu não me preocupar, que eu estava apenas vendo coisas e que eu desmaiei por queda de pressão. Mas, mesmo assim, eu não parava de pensar no que havia visto, era tão real que eu poderia jurar que os vi junto com os outros quando acordei no camarim, e só não contei porque iriam novamente dizer que era coisa da minha imaginação.
Então fomos embora, para nossa casa em Londres, e não sei o que estava acontecendo comigo, mas estava cada dia pior. Via coisas se mexendo sozinhas, sonhava com a morte dos outros, ouvia vozes e um dia eu me lembro de ter visto um velho de terno e rosto calado, observando-nos da janela.
...
Ozé e Greycesnake brigaram e ele ia toda noite para um bar e voltava bêbado. Drogava-se também. Danilo e Marcos Jr. falaram com ele, mas nada adiantou. Ele continuou na mesma por várias semanas, quando saímos para uma nova turnê. No entanto, quando voltamos ao nosso lar, ele voltou à mesma rotina viciosa de antes e assim foi por um bom tempo. Nós até que tentamos fazê-los se entender, e eles até se reentenderam, porém a memória de Carmem (Kajovi) se mostrou muito presente e José caiu numa vala profunda. Não havia mais o que fazer. Greyce saiu da banda, não demorou muito e entramos em hiato. Um ano após a separação, veio a notícia: José, ou Ozé, foi encontrado morto em seu apartamento. Estava tudo
virado de cabeça para baixo. O corpo gelado, não apresentava sinais de violência. A autópsia então confirmou nossas suspeitas: overdose.
Como já era de se imaginar, Greyce ficou arrasada. Ficava se culpando pela morte de José. Não comia, não bebia, não dormia. Ela chegou a ser internada. Deitada no leito do hospital permanecia paralisada olhando para o nada:
- Alguém pode ajudá-la? - eu perguntava. Ninguém me respondia - ela precisa de ajuda! - eu insisti
Infelizmente, foi perda de tempo, pois ninguém me respondeu. Era aterrorizador ver a imagem de Greyce, Greycesnake, naquele estado. Lágrimas escoriam pelo seu rosto moreno. Os olhos vermelhos, parecia morta. Demorou até que ela voltasse a falar, e as primeiras palavras que ela disse foram:
- É tudo culpa minha. Eu mereço morrer. Eu tenho que morrer.
Ninguém entendeu o que ela quis dizer, mas a levamos para nossa casa. Iríamos cuidar dela. Passamos bem as primeiras semanas. Porém, teve um dia que ela saiu de casa, não sei como, e Caroline foi atrás dela. Quando a encontrou, não queria ter encontrado. Havia muito sangue, a cabeça separada do corpo, numa árvore uma corda.
Greyce havia cometido suicídio. Uma testemunha nos informou que ela subiu na árvore e sentada num galho, amarrou a corda no pescoço e no galho. Quando pulou a corda começava a ceder. Ela caiu já sem vida. Mas não se sabe como aconteceu a decapitação, já que, segundo a testemunha, não apareceu mais ninguém no lugar até Caroline chegar. O que havia de indício era um machado ensanguentado. O mais estranho, é que as únicas impressões digitais que tinham ele, eram de Greyce. Bom, mistérios a parte, esse era definitivamente o fim da banda, principalmente depois que Danilo, o Dani Kiss, e sua namora foram encontrados motos em um quarto de motel. Tiro a queima roupa, na cabeça. Homicídio premeditado. Motivo: ciúme, a namorada de Danilo era ex do assassino deles. Agora, só restaram meu marido, minha filha e eu. Vamos viajar esta tarde, para tentar esquecer isso um pouco.
...
Passamos cinco horas na estrada. Faltando cerca de meia hora para chegarmos, algum veículo muito grande, acho que era um caminhão, perdeu o controle e veio em nossa direção. Não lembro de muita coisa, só o que eu lembro, é que acordei na minha casa, e a banda estava toda reunida novamente, todos sorrindo para mim, daí os médicos conseguiram me reanimar. Eu estava era num hospital quase morrendo. Eu acabei voltando para minha casa depois de uns dias, mas sozinha. Meu marido e minha filha não puderam voltar comigo, eles morreram. Deixaram o último sorriso naquela estrada. Agora, estou sozinha novamente, e escrevo para descarregar as mágoas guardadas em meu coração.
Por que eu vi tantas pessoas morrerem? Primeiro meus pais, depois minha tia, Carmem e Laura, José, Greyce, Danilo e agora Marcos Jr. e Caroline. Eu enterrei minha própria filha, isso não é natural, vai contra a natureza. E por que eu ainda não morri? Talvez eu devesse me matar, mas não. Amanhã recomeço minha vida, porque nada tem realmente um fim, mas um novo começo. Fim é apenas uma palavra de três letras que usamos para designar aqueles momentos da vida, em que temos que abandonar tudo o que temos e tudo o que fazemos, para começar do zero, aprender com os erros, minimizar os defeitos, construir com as conquistas, mesmo que pequenas, melhorar. Sim, recomeço.
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