terça-feira, 9 de junho de 2015

Fugindo do Passado

Um quarto escuro. Uma cama. Uma menina de uns doze anos escondida sob as cobertas. Uma garota assustada, com medo e chorando. Ela sai de seu “esconderijo”. Vai embora. Deixa sua casa, sua cidade, seus medos. Nesse momento, vemos a garota andando sozinha, só com a roupa do corpo e descalça, por uma estrada escura. Logo avistamos um portal, onde dizia: “Você está deixando esta cidade”. A vista da garota embaça, e o que ela lê no portal é: “Você está deixando seu passado pra trás!”.
Os dias passam. Em uma majestosa São Paulo, a garota, toda suja e maltrapilha, entra em uma lanchonete. Senta-se ao lado de um belo rapaz, mas não repara nele. A atendente se aproxima, anota o pedido da menina e logo o trás. A garota, mesmo com fome, come devagar, tem expressões vagas, um olhar profundo e vazio. Ela termina de comer e pede a conta.

- O que houve com você, moça? – pergunta o belo rapaz ao lado dela

- Nada – responde ela com certa frieza nas palavras, enquanto levanta-se.

- Aonde vai agora?

- Vou procurar um viaduto para fazer de casa

E ela vai embora. Não demora a achar um viaduto vazio e sentar-se abaixo dele. O belo rapaz da lanchonete chega e senta-se ao lado dela, que olha espantada para ele e afasta-se.

- Calma, moça, eu só quero ajudar – ele estende a mão, deixando um jornal aos pés dela. Levanta e deixa o local.

A garota senta novamente, pega o jornal e o abre. Uma delicada correntinha desliza sobre o papel e cai sobre os joelhos da menina, que a pega e pendura em seu pescoço.
E o tempo passou. A menina conseguiu um emprego temporário e trabalhou até poder comprar um apartamento, no décimo oitavo e último andar de um prédio de equina em L. As janelas do quarto da menina e do seu vizinho, que era o mesmo rapaz da lanchonete que entregou o jornal e a correntinha, quase se encostavam, formando também um L, de onde se via o estacionamento interno do prédio e outros prédios à frente e aos lados.
Um dia, enquanto ele estava em seu quarto usando o computador, próximo à janela, ela atendia o celular aos berros.

- Alô? O quê? VÊ SE ME DEIXA EM PAZ, DEPOIS DESSES ANOS TODOS, EU NÃO QUERO TE VER NUNCA MAIS! E NÃO VENHA AQUI!

Dizendo isto, ela joga o celular pela janela, apoia as mãos no parapeito, abaixa a cabeça e começa a chorar.

- Moça, está tudo bem? – pergunta o vizinho

- Não, mas vai ficar! – ela senta no parapeito e ameaça pular. O vizinho mais que depressa, pula sobre a garota a empurrando para dentro do quarto.

- Por que fez isso?

- Por que tentou se matar?

- Tenho meus motivos.

- Me conta

- Não. Vá embora.

- Tudo bem, mas não faça aquilo de novo.

Ele volta para seu apartamento.
Os dias se vão, e num fim de tarde, a garota chega em seu apartamento e encontra um bilhete caído no chão e o lê. Era uma ameaça, da mesma pessoa que havia ligado antes dela jogar o celular pela janela. Assustada, ela corre para o seu quarto e tranca a porta. Vai até a janela e vendo que o vizinho não estava ali, subiu no parapeito e pulou.
La embaixo, o vizinho acabava de sair de seu carro, quando viu a moça cair. Correu, e conseguiu salvá-la. Chorando e ainda assustada ela correu novamente para seu quarto, mas desta vez não pulou a janela. Apenas deitou em sua cama. Na tarde seguinte, ela ficou observando o vizinho pela janela. Quando ele notou, sorriu pra ela, que acanhada retribuiu. Então ouve-se um barulho de porta batendo e a garota olha para trás. Uma figura masculina grotesca se faz presente no quarto dela.

- FIQUE LONGE DE MIM! – gritou ela

Sem dizer uma palavra, o homem, gordo e grosseiro, abriu o botão de sua calça e aproximou-se com malícia da pobre garota. O vizinho vendo aquilo pulou sobre o homem, o derrubando no chão.

- Corra para o meu apartamento e chame a polícia! – diz ele à garota

Ela obedece, enquanto ele paralisa o homem. Depois de alguns minutos, o homem reage e derruba o rapaz. A polícia chega. A garota aponta para o homem gordo como agressor e ele é preso. Já no corredor, os policiais levaram o acusado, e a garota abraçou o vizinho e lhe agradeceu.

- Mas quem era aquele homem?

- Meu padrasto. Aquele porco é meu padrasto.

- Seus pais são divorciados?

- Não. Meu pai morreu antes de eu nascer. Quando eu tinha uns dez anos minha mãe levou aquele porco pra dentro de casa. No começo ele até foi gentil comigo, mas não demorou nem um mês e ele começou com os abusos...

- E você ficou calada?

- Eu falava pra minha mãe, ela chamou a polícia algumas vezes. Não adiantou. Ele batia nela também. E assim passaram dois anos, até que eu não aguentei mais e fugi de casa. Vim pra cá, criei uma vida aqui e depois desses anos todos ele voltou...

- Mas foi preso. Isso não te alegra?

- Sim, muito. Sabe de uma coisa, ainda não sei seu nome.

- Lucas. E eu também não sei seu nome.

- Me chame de Tina

- Tina?

- Meu nome é Ernestina.

- Claro. Muito prazer, Tina.

- O prazer é meu, Lucas.

Tina tinha 17 anos, Lucas 20, e eles se tornaram grandes amigos, amigos até demais. Passavam todo o tempo livre, juntos. Depois de poucas semanas já se conheciam tão bem, que parecia que conviviam daquele jeito há anos. Aí ela apareceu. A mãe de Tina levou-a de volta para a cidadezinha onde ela morava.
No natal do mesmo ano, dez meses depois, Tina vai ao mercado a pedido de sua mãe. Na volta, vê um carro parado na esquina de sua casa. Encostado no capo, estava o dono do carro, mexendo em seu celular. Sem reparar nele, ela segue em direção a sua casa.

- Ei, moça – chama o dono do carro. Ela vira-se – Você sabe onde... Tina!

- Lucas!

Os dois abraçam-se

- O que você está fazendo aqui, seu louco.

 - Eu precisava ver você.

O silêncio tomou conta, Tina e Lucas se olhavam, seus rostos se aproximavam. Logos os olhos se fecham, os lábios se tocam, e o amor acontece.
Tina voltou para casa acompanhada por Lucas e apresentou-o a sua mãe. Ele ceou com as duas e com o novo namorado da mãe de Tina. Quando chegava a hora de ir embora, pediu a permissão dos pais de Tina, para ser namorado dela.

- É claro que não. Você não tem nossa permissão rapaz. Tina é muito jovem para namorar – disse a mãe.

- Mãe eu já tenho 18 anos. Sou maior de idade e posso fazer o que eu quiser.

- Não enquanto estiver na minha casa.

- Se é assim eu vou embora.

Tina e Lucas saem. Ele a leva para outro lugar e eles conversam dentro do carro.

- Se eu voltar pra São Paulo com você, eles vão atrás de mim novamente.

- É só a gente ir pra outro lugar. Pegamos nossas coisas em São Paulo e a imobiliária do prédio se encarrega do resto.

- É uma boa ideia, mas... Não sei...

- Vamos, ou você prefere ficar aqui e reviver seu passado todos os dias e ser tratada como aquela criança de doze anos que fugiu de casa. 

- Tem razão, essa cidade, todo o meu passado, meus medos, está tudo aqui. Eu tenho que ir embora, para ser feliz. Eu tenho que fugir de casa. Eu tenho que fugir com você.

Os dois sorriem e seguem pela estrada até São Paulo e como combinaram pegaram todos os seus pertences e foram para outro lugar. Entregues a sorte e a vida, foram para longe, muito longe, e na entrada da nova cidade, um portal onde eles leram: “Bem Vindos à sua nova vida”. 

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